Por Alexandre Moca
Quanta água limpa passou por debaixo da ponte de ferro do Morgado e foi forçada a fluir pelas ombreiras da ponte de Tábua que dava acesso aos embarcantes e desembarcados da Estação Conde D’eu? Não há como mensurar.
Nas cheias, vez por outra, o velho Rio ameaçava lamber os trilhos implantados pela Great Western of Brazil Railway Company Limited, construtora da E.F Independência Picuhy (inacabada). A chegada do trem ao Morgado teve, à época, o aval da tesouraria do Império. Tempos de Brasil escrito com “Z” e de nomes pomposos a designar empresas e empreitadas grandiosas. A estação ferroviária Conde D’eu recebeu essa denominação em homenagem ao marido da Princesa Isabel, Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans, acrescentando ainda mais pompa e circunstância a essa chegada.
A ponte de ferro, confeccionada com espessas chapas de aço cruzadas e cravadas umas as outras, sequer vibrava quando sobre ela passavam as composições. Ao sabor do abandono, ainda dá sinais de que resiste por um século ou mais, desde que minimamente cuidada. Se não mais como ponte, pelo menos como monumento arquitetônico. Já a ponte de Tábua, que dado às suas instabilidades parecia ser pênsil, foi levada pela enxurrada do descaso, dando lugar a uma outra, quase nos mesmos moldes da anterior.
Vencidas as pontes, lá se ia o Rio do Morgado juntar-se ao Riacho dos Cachorros.
A partir dessa junção, principalmente nas grandes chuvas, seguia junto com o caudaloso afluente na sua demanda sinuosa em busca do Mamanguape, enriquecendo as beiradas dos canaviais com o seu poderoso aluvião, enchendo vazantes, esborrando pela planície litorânea e dando a senha da fertilidade que encheu e enche até hoje as burras canavieiras. De lá seguia adoçando a vida de camurins e peixes bois até desembocar na grande Barra, límpido e puro, quiçá ingênuo, como representado nas pinturas “naif”.
No sentido inverso ao do rio, o trem chegava à plataforma da Conde D`eu e seguia a montante de mais um dos flancos da serra da Borborema, cumprindo o seu destino de cargueiro e transportador de pessoas, indo esbarrar nas beiradas da Chã do Moreno, de onde não passou. O segundo caminho de trem, possível a partir da estação Conde D’eu, ia parar em terras potiguares, numa estratégia perfeita de integração nacional sobre trilhos.
Os cursos dos rios são imposições topográficas da natureza, correm sempre a jusante, ou seja, a favor dos declives, enquanto os cursos das linhas férreas começam, no mais das vezes, a montante dos oceanos, por imposição do homem e dos seus sonhos desbravadores.
O enquadramento perfeito: trem em movimento, janela e paisagem. Esses elementos, juntos, compunham a parte dinâmica da cena. E lá se iam homens e mulheres viajantes, prenhes de suas utopias, essas que também pesam sobre os trilhos e sendas, como átomos do grande sonho humano, sonho que pode ser decifrado no desejo de tornar a própria existência algo que valha, que lhe confira honra e orgulho.
Os rios morrem, as estradas de ferro também. Permanecem as cachoeiras, os desfiladeiros, os vales, as estações, os túneis, as passagens de nível, os trilhos e dormentes.
As paralelas de aço nobre forjadas por ingleses, refratárias inclusive à ação da ferrugem, vão aqui e ali sendo saqueadas. A vegetação, de forma voraz, invade o leito necrosado da estrada, apropriada que foi por uma espécie de esquecimento, envolta na bruma de uma demência coletiva, até que seja completamente apagada das nossas memorias.
Cursos de rio e ferrovias, em seu paralelismo incidental, padecem certamente da desídia dos cuidadores públicos e dos ribeirinhos, que de forma insana trocaram água limpa e fluída dos regatos, por esgotos fétidos. Trocaram as rodas de ferro sobre trilhos, por pneus de borracha. Deram lugar a egoísticas e onerosas trilhas de asfalto, estrategicamente concebidas para o lucro de alguns poucos.
E como não lembrar, principalmente se menino à época, (daqueles que aos olhos tudo agiganta) da chegada do PM (Post Meridian), ou melhor dito, o trem da tarde na estação Conde D’eu.
A composição dava avisos de que estava por perto desde a passagem do pontilhão da Milhã, com apitos espaçados, codificados e decodificados pela linguagem ferroviária. Tais sinais faziam moverem-se desde os agulheiros, guarda-chaves e sinaleiros, até o chefe da estação, nos preparativos para a chegada do imenso bólido de aço.
Quando apontava na curva de chegada, sedento, aparentava que em Camarazal não tinham lhe dado o de beber. O seu estômago de máquina vinha empanzinado de tições em brasa de angicos, pau d`arcos e craibeiras das nossas matas, dentre outras espécies.
Quando parava o resfolego, soltando fumaça branca por todas as válvulas da caldeira e fumaça preta pela chaminé, alinhava-se a imensa caixa d’água posta sobre uma torre de ferro, na qual uma torneira pivotante era movida para encher o bucho sedento do impressionante, porém amigável monstro de ferro.
Morreu o Rio Morgado, rebaixado a esgoto por desleixo dos aldeões. Morreu a Estrada de Ferro Independência Picuhy, que ousou alçar mais um flanco da Borborema e esbarrou nas beiradas da Chã do Moreno, passando pela Camucá de Ramalho Leite e até por debaixo do chão para amainar os rigorosos aclives.
O único prédio que sobrou do conjunto arquitetônico da estação Conde D`eu, vinha gritando há tempo pela atenção da aldeia. Foi-se a garagem das locomotivas, a roda de giro, a caixa d’água de aço, dentre outras edificações. Foi-se a miudagem, como o relógio, o telégrafo, os sinos e as bandeiras sinaleiras, pilhados por gente miúda e inescrupulosa. Aproveitaram-se do longo hiato de desatenção com essa parte importante da nossa história.
Só agora restaurada, a estação dará lugar a uma galeria de arte ingênua. Uma referência para a cidade, um equipamento cultural com a dimensão “urbi et orbi”. Que não seja uma obra para inglês ver, como no aforismo recorrente dos idos do império.
Já não era sem tempo.
Uma festa para os nossos olhos e corações. Uma festa para, dentre outros, Braguinha, Adriano Dias, Luís Tananduba, Clóvis Júnior e Alexandre Filho, todos aldeões ou naturalizados, mestres da complexa simplicidade escrever com cores a nossa vida, o nosso modesto cotidiano, a nossa paisagem. São eles responsáveis e guardiões de uma arte que de plano nos emociona ao ser tocada com os olhos.
Uma festa para os novos ingênuos, cada qual com o seu olhar, a contar com cores a nossa saga, a dizer com seus traços sobre a nossa paisagem em telas que acariciam as nossas almas, almas nem de longe ingênuas.
Alvíssaras! Pelo menos nesse particular não estamos fadados a perder o trem da História.
Alexandre Henriques (Moca) é cronista, fotógrafo-multimídia