Por Alexandre Henriques
Na guerra travada nas redes sociais, avoluma-se um tipo de lixo nunca visto antes. A produção desses dejetos virtuais reflete muito do nosso caráter, da nossa hipocrisia, enfim, da nossa falta de educação política.
Mas nem tudo no mundo virtual é lixo, aqui e ali dá para garimpar construções textuais que nos obrigam a pensar, ou seja, tudo que precisamos nesse momento agudo da vida nacional. Nesse particular me impressionou, sobremaneira, os escritos de Carlos Frederico Alves e Raquel Lucena. Falo mais deles daqui a pouco.
No seio das famílias, como na sociedade de um modo geral, continua a plantação da discórdia, no roçado da insanidade. Há algum tempo esse roçado já vem sendo irrigado com sangue de brasileiros como Marielle Franco, Anderson e agora Moa do Katendê, dentre tantos outros tombados e ainda por tombar no piso desse matadouro imundo em que se transformou o Brasil.
Quantos mais precisarão morrer? Essa é a pergunta que não quer calar.
Preenchemos o espaço que deveria ser do debate com uma briga rasa, como a de torcidas organizadas de times de futebol, açuladas por um dos principais atores políticos da atualidade, contumaz incitador da violência, violência que o fez, ele mesmo, vítima da sua própria pregação.
O tresloucado é quem vai dando o tom da desbragada contenda, calçando a sua loucura com frases de efeito rápidas e digestivas, feitas sob medida para cérebros pouco malhados, obesos de ódio, encharcados de preconceito e adiposos de ignorância.
Para esses é criada uma dieta mental à base de pequenos refrões, cujos conteúdos eles, ao passo que ouvem e veem, saem balindo, felizes, como se não estivessem em risco a sua própria carne e lã.
Enquanto isso prossegue o responsável pela balbúrdia nacional, sem saber nada de economia (exceto a que lhe fez rico vivendo apenas da política); nada de educação (sequer a doméstica); nada de saúde (sequer a mental) nada de segurança (a não ser a que indica a solução final* para pobres, negros, índios, nordestinos, homossexuais e minorias de um modo geral, como no nazismo). E tudo isso, pasmem, em nome de Deus e da família.
O que se move pela força, nada mais é do que uma espera, até que inteligência dê as caras. O matemático, físico e pensador grego Archimedes de Siracusa, cunhou com muita propriedade uma frase simples, da qual todos nos lembramos, que fala da alavanca e do ponto de apoio, capazes de mover o mundo.
Quando um grupo numeroso, de forma manipulada faz a opção insana pela força, toda a sociedade entra em estado de choque, pois o risco se torna iminente.
A atitude irascível nos faz lembrar a fábula do tangerino que tentava atravessar um pequeno regato com um burro, quando animal empacou em uma das margens.
O almocreve, irresignado, olhou para o burro e disse: você pode até ter mais inteligência, porém não tem mais força e ignorância do que eu. Dito isso, botou o burrico nos braços, com carga e tudo, e o atravessou para a outra margem do rio.
Diferente da fábula, um país como o Brasil é muito grande e diverso para que um ignorante e um burro, ou vice e versa, o coloquem no lombo ou nos braços e tentem atravessar a atual crise.
É de bom alvitre lembrar que a tal crise foi tramada pelo patrão do tangerino e pelo dono do burro, que coincidentemente são a mesma pessoa. Por trás da cena, a intenção do chefe da empreitada,não é outra, a não ser a de se apropriar da carga que não lhe pertence.
O que nos alenta, em meio a essa barafunda, é ver circular nas redes produções textuais como a do jovem Carlos Frederico Alves.
É necessário dizer que o conheço desde menino e que ele biólogo de formação e por vocação. Não é demais lembrar que apesar de muito novo, já se destaca no meio científico, sendo certamente motivo de orgulho para família.
Talvez não seja uma unanimidade, uma vez que não há família que não esteja dividida pela política. Pela contundência das suas breves assertivas sobre a juventude a qual pertence, e ao usar uma linguagem idiossincrásica, acerta no alvo como uma flecha atirada por um arqueiro experiente.
Seu texto, publicado no facebook e autorizado pelo autor, transcrevo abaixo. Nele estão contidos alguns questionamentos endereçados à sua geração, mas na realidade pisa e repisa na hipocrisia nossa de cada dia, que ao longo dos séculos desalinha os nossos discursos das nossas práticas.
Ele abre dizendo que antes de falar de política, temos que falar de hipocrisia e questiona o teor de algumas afirmações comuns em nosso cotidiano na atualidade, vistas principalmente nas redes sociais, clivando as sentenças com a sua opinião quase endereçada:
“Sou contra corrupção”, mas saiu comprando voto para o candidato nas últimas eleições.
“Sou contra corrupção”, mas sonega impostos.
“Sou contra corrupção”, mas paga propina a polícia.
“Sou contra corrupção”, mas era funcionário fantasma na prefeitura.
“Sou contra corrupção”, mas serviu de laranja para um prefeito.
“Sou contra corrupção”, mas roubou a empresa do próprio pai.
“Sou a favor da família tradicional”, mas trai a esposa.
“Sou a favor da família tradicional”, mas bate na esposa.
“Sou a favor da família tradicional”, mas tem caso com gay.
“Sou a favor da vida”, mas tomou Citotec.
“Sou a favor da vida”, mas tomou caixas e caixas de Dia D com 2 meses de gestação.
“Sou contra a descriminalização da maconha”, mas fumava escondido perto do cemitério.
“Bandido bom é bandido morto”, exceto quando ele é da corporação.
“Bandido bom é bandido morto”, exceto quando ele é seu familiar.
“Bandido bom é bandido morto”, exceto quando ele é empresário sonegador de imposto.
“Bandido bom é bandido morto”, exceto quando ele é médico e deixa morrer o paciente por puro descaso.
“Uma pessoa que fez a preparação não fará besteira com uma arma regularizada”, Bastará beber para sair dando tiro pra cima.
“Direito trabalhista só prejudica o empresário”, mas não paga nem o básico exigido.
“Bolsa família só sustenta vagabundo”, mas nunca criticou o auxilio recebido pelos políticos.
“Bolsa família só sustenta vagabundo”, mas não larga o osso da pensão vitalícia do pai militar.
“Bolsa família só sustenta vagabundo”, mas nunca sequer foi em zonas rurais ver o impacto positivo na vida das pessoas.
“Cotas são para vagabundos que não estudam”, mas mesmo estudando nas melhores escolas, nos melhores cursinhos, sequer chegou na pontuação mais baixa do cotista.
Na outra ponta, Raquel Lucena, arquiteta, atriz, esposa, mãe e filha de um “Biu” que migrou para Sudeste décadas atrás, a exemplo de tantos outros, não com medo da Severina de João Cabral de Melo Neto, nem perseguido pela Caetana de Ariano Suassuna. Se quisesse bem que podia ter ficado, mas por inquietude e desejo de aventura, ganhou o mundo e o destino o fez Tenente do Exército. Petrópolis, foi sua segunda pátria. Lá a viveu maior parte dos seus dias, sem nunca esquecer suas raízes.
Raquel Lucena, filha do tenente do exército, foi educada pelo pai, militar reformado, que deixou cedo as tropas em virtude de um acidente, e que cumpriu sua missão como professor da Escola Militar no Rio de Janeiro. A filha diz nunca ter ouvido do pai as barbaridades que tem ouvido de um militar da mesma arma, que saiu pela porta de trás da corporação, após se safar de um inquérito. O mesmo que hoje disputa a vaga de presidente da republica e, por consequência a de chefe das forças armadas.
Com a sua visão humanista; com a sensibilidade e a percepção em sintonia fina com a realidade (posso depor nesse sentido), Raquel narra cenas que beiram o surreal. Fosse apresentada em um palco de teatro, certamente entraria para o rol das grandes tragédias.
Noturnamente angustiada, como também ando, ela me conta que viu um jovem abraçado a um pai que assassinou a mãe do primeiro e mulher do segundo, sem nunca ter sido preso, bradar antropofágicamente o grito de guerra da barbárie em curso, “bandido bom é bandido morto!”.
Raquel também viu uma mulher, depois de ser jogada do segundo andar pelo marido, minimizar o episódio e deixar de se solidarizar com outras mulheres agredidas. Final dos tempos?
A jovem arquiteta e o biólogo não estão sozinhos em suas angustias, me filio a eles e sei que muita gente também comunga da mesma sensação de espanto diante de tanta irracionalidade.
É que a balburdia e a agressividade tanto se avolumaram, que o desejo de muitos é mesmo o de gritar de forma quase catártica, de botar para fora alguma coisa que sequer sabem o que é. A atitude confirma a máxima de Millor Fernandes. Nesse caso, a de que a boca é o aparelho excretor do cérebro.
A maioria que efetivamente vota e elege, geralmente não é barulhenta. A palavra calma e pausada é muito mais compreensível e chega muito mais enquanto mensagem.
Mesmo que assim não seja, o arisco potro da democracia não respeitará a montaria de farsantes que lhe queiram por cabrestos, bridas ou arreios.
*Solução final: O termo “Solução Final” foi empregado para se referir, de forma eufemística, ao plano de aniquilação total do povo judeu. O genocídio, ou extermínio em massa dos judeus, foi o ápice de uma década de graves medidas discriminatórias contra eles.
Alexandre Henriques é cronista, fotógrafo-multimídia