Se estivesse vivo hoje, completaria um século de existência o intelectual, advogado e político paraibano Osmar de Aquino.
Em 2003, com Osmar já falecido, Guarabira, sua terra natal, viveu dias de rebuliço, com a decretação, a quatro mãos, de uma portaria que visava repor a “segurança” e a “ordem” supostamente quebradas por episódicos registros de violência acontecidos em alguns bares.
A cidade foi tomada, em tempos de paz, por um verdadeiro toque de recolher. Bares fechados e ninguém nas ruas. Era a determinação. O que foi um terror para a nossa vocação boêmia acabou por reacender a nossa vocação rebelde.
Vale anotar que a sedução por atos de força nunca deixou de existir e ainda encanta a muitos até hoje, como que hipnotizados pelo discurso da servidão voluntária, expresso de forma belíssima por Étienne de Lá Boetie, em sua obra homônima.
À época me insurgi, junto com outros amantes da noite, contra o açodado toque de recolher. O escrito que reproduzo a seguir foi parar nas páginas do processo judicial que culminou com a devolução, por sentença, da liberdade boêmia. Sua inspiração se deu em uma das muitas histórias envolvendo Osmar de Aquino e a sua relação com a terra natal. À época o texto foi publicado no Jornal do Brejo. Hoje, dedico aos leitores dessa coluna e aos amigos e admiradores de Osmar, quando da passagem do seu centenário de nascimento.
SEGUE A CRÔNICA.
“Foi preciso ver para acreditar. O tal documento existe mesmo e foi editado sob a forma de portaria, chancelada por quatro das mais distintas autoridades municipais, em papel timbrado contendo a logomarca da municipalidade. A ordem foi assinada pelo Secretário do Meio Ambiente, tendo ainda como signatários um representante do Ministério Público, o Superintendente de Policia Civil e o Comandante do Batalhão de Polícia Militar. Está decretado de verdade. De agora em diante, comer e beber no Morgado de Costa Beiriz depois da meia noite, só no sagrado recesso das nossas casas.
Que monótono!
As Cinderelas modernas, que habitam as praças e calçadões da cidade, jamais terão o encanto quebrado. Antes que chegue o horário fatídico elas já estarão em casa, sob os lençóis.
Que tédio!
Antônio de Amália que com o tempo e a idade ficou conhecido pelo apelido de Pai Tonho, boêmio de vastas credenciais, se vivo fosse, diante do injustificado ato de força lembraria, sem sombra de dúvida, uma das heroicas passagens do seu padrinho Osmar de Aquino, nas incursões noturnas que fazia pela sua Paris brejeira. Era assim que Osmar se referia ao Morgado de Costa Beiriz, chegando, certa feita, ao extremo de afirmar: “Ou Guarabira ou Paris”.
Não pensem, todavia, que Pai Tonho era afilhado de pia de Osmar de Aquino. Na verdade, não foram poucas as vezes em que o boêmio foi liberto das grades ou tirado das garras da polícia pelo ilustre advogado e líder político do Brejo, tudo sem precisar de aviar nenhum pedido de “habeas curpus”.
Envolvido em frequentes arruaças, Pai Tonho não dispensava uma navalha afiada dentro da meia, hábito adquirido no cais do porto em Recife, durante a segunda guerra. Somadas à navalha, algumas frases em inglês faziam parte da indumentária do boêmio e também eram sacadas em caso de necessidade.
Como ele mesmo contava, teve que aprender alguns rudimentos do idioma ianque, maneira mais fácil de conseguir cigarros e bebida com os marinheiros americanos.
Com a verve que lhe era peculiar, Pai Tonho narrava, de forma rica em detalhes, a tirania de um tal delegado de polícia, pau mandado de um dos chefes políticos da época da sua juventude.
A autoridade (e bote autoridade nisso) determinou o fechamento da Estrela, um dos mais conceituados cabarés da aldeia, por coincidência, no mesmo horário da recomendação emanada pelas autoridades municipais de hoje, no sentido de fechar os nossos bares e restaurantes.
A investida do delegado levava ao ralo a vocação boêmia da Paris de Osmar. Significava dizer que, a partir da meia noite, como no samba de breque de Morengueira, quem estivesse fora do cabaré não entrava e quem estivesse dentro não saía. Se fosse pego na rua do meretrício depois das doze badaladas do sino da Matriz, seria preso.
Recém-chegado à cidade, vindo do Rio de Janeiro onde exercia mandato deputado federal, além de integrar a refinada boemia intelectual da capital da república, Osmar, como de outras vezes, cumpriu as “sociais” de praxe e não via a hora de encontrar com os companheiros da boemia local.
Depois de desdobrar infindáveis explicações sobre o quadro político nacional, diante das lideranças regionais, eis que lhe chega a notícia, em forma de cochicho, trazida pelo próprio Pai Tonho.
— Padrinho, a coisa tá feia. O delegado deu ordem de fechar o cabaré à meia noite. Mal a farra começa, já tem que acabar. Um dia desses um funcionário do Banco do Brasil foi flagrado tentando entrar numa pensão depois do horário e o senhor não sabe o que aconteceu. O delegado pegou o coitado pela cintura jogou a cabeça dele na porta. A pancada foi tão grande que até hoje o pobre anda desorientado do juízo. Nunca mais fez uma conta que prestasse. Dizem até que vai ser aposentado.
Osmar, intransigente defensor da liberdade e inimigo de qualquer tipo de violência, quase não conteve a indignação, porém, recuperado do choque provocado pela notícia, ponderou:
— Calma Antônio, daqui a pouco a gente vê isso.
Depois de tomarem umas e outras no bar de Zé Lucas, saíram em direção à Estrela ele, Pai Tonho e alguns outros notívagos. Lá, foram batendo de porta em porta, abrindo as pensões, uma a uma, sob o olhar assustado de suas donas ou gerentes.
Num momento grave como esse não faltou quem saísse correndo para dar a notícia ao delegado, omitindo, de forma marota, a autoria da desobediência.
Botando fogo pelas ventas, a autoridade sequer teve tempo para reunir os quatro meganhas que comandava. Confiante, decidiu enfrentar a parada sozinho. Diante do cabaré iluminado e em festa, quase sem ser percebido pelo fato de estar à paisana, resolveu entrar na pensão mais animada; a que reunia mais gente à porta e onde a algazarra era maior. Ali, certamente, deveria encontrar o autor da desordem e, lá mesmo, aplicaria um corretivo que ficaria na lembrança do infrator para o resto dos seus dias.
A noticia da reabertura do cabaré correu como rastilho de pólvora. Boêmios de toda sorte apareceram para comemorar a reabertura do cabaré.
As vitrolas enchiam de sons e alegria a rua da Estrela. Uma verdadeira abundância de música, risos e gargalhadas. Alguns trouxeram violões, atabaques e maracas, completando a algazarra. O rabo-de-galo (cachaça misturada com Cinzano) corria frouxo.
No ar, porém, uma certa tensão envolvia a todos. Como seria o confronto? De um lado, o deputado federal, advogado e intelectual respeitado. Do outro, o temido delegado, investido de imensuráveis poderes conferidos pelo chefe da política local, opositor de Osmar.
Abrindo caminho rispidamente entre os que se aglomeravam em frete à pensão mais animada, uma vez que não comportava tanta gente em seu interior, o delegado entra de forma abrupta.
Osmar acabara de citar Honoré de Balzac, em puro francês, enquanto erguia mais um brinde. Sequer notou presença da autoridade no recinto.
No interior da pensão, era aplaudido ao final de cada frase. Só interrompeu a citação que fazia quando o silêncio foi forçado pela presença do delegado.
— É o senhor doutor Osmar?
Disse a autoridade entre tímido e já meio arrependido, ao dar de cara com o autor da “desordem”.
Firme e em voz alta, Osmar respondeu.
— Sou eu sim, Delegado. Junte-se a nós. Tome um rabo-de-galo.
— Obrigado, doutor Osmar. É que eu acordei agora e antes já tinha dado ordem para fechar o cabaré…
Foi Delegado? Pois eu dei ordem para abrir !
Afeto às citações em forma de rompante, como era a característica dos bons oradores da época, destampa Osmar, de copo na mão, em tom de sentença:
— O homem que só bebe água tem algum segredo que pretende ocultar dos seus semelhantes!
Sabe quem disse isso delegado ?
— Sei não senhor. Meu estudo é pouco e na polícia, o senhor sabe, a gente tem que escolher: o estudo ou a valentia.
— Charles Baudelaire, poeta francês, boêmio e rebelde como nós — e emenda —”Un homme qui ne boit que de l‘eau a un secret à cacher à ses semblables”.
Ninguém entendeu uma só palavra, mas a citação, em puro francês, rendeu aplausos por mais de três minutos.
Tamba, que se encontrava presente, admirador incondicional de Osmar, dotado de uma das mídias de gravação mais precisas da época, ou seja, o ouvido, registrou tudo. Só pediu que o deputado repetisse a frase mais duas vezes e a eternizou em sua memória, tanto no idioma pátrio como em francês. Com o seu lábio leporino, fissura que abria como uma cortina o beiço de cima até a linha mediana do nariz, deixando expostos permanentemente os dentes incisivos centrais superiores, Tamba reproduzia esta e outras citações do ilustre político com a desenvoltura de um ator intérprete de Shakspeare.
De posse de uma dose de cachaça em uma das mãos e uma pitomba semi descascada na outra, repetia essas citações de Osmar em tom de loa, sempre abrindo sua oração com um “Assim disse doutor Osmar no cabaré de Zefa Morais … (por exemplo). Após tomar a lapada de cana, mais uma vez repisava o bordão, como se pronunciasse uma sigla: “E assim disse O S M A R”.
Voltando ao incidente, Osmar aproximou-se do Delegado insistindo para que ele tomasse um rabo-de-galo. O delegado, mais uma vez agradeceu, sob a alegação de que havia acordado naquela hora.
Foi aí que, para regozijo dos presentes, o deputado ordenou de forma incisiva, com o tom de voz que lhe era peculiar depois de alguns goles.
— Já que você não vai beber Delegado, segure meu paletó…
O delegado fez do braço um cabide e acomodou com cuidado a vestimenta, para não deixa-la mais amarrotada do que já estava.
— Dr. Osmar, eu prefiro ir para casa, descansar. Amanhã lhe faço uma visita — disse como quem se sente acuado, pálido e visivelmente incomodado.
— Calma Delegado, eu não o dispensei. Não vou ficar responsável sozinho pelo cabaré. E se acontece alguma arruaça?
Ao dizer isto deu as costas ao delegado e continuou citando Baudelaire, em tom ainda mais teatral.
Vingada com a desmoralização do Delegado, a plateia disfarçava o contentamento, fazendo de conta que o motivo de tanta satisfação era o discurso de Osmar, em idioma estrangeiro.
Um mais afoito, com a coragem emprestada pelo rabo-de-galo, gritou: memória é aí… tudo na cachola, sem tá lendo nada. E aí banga? Doutor Osmar é o fraco que eu chamo!
Enquanto isso o Delegado, com a patente transformada em cabide, rosnava impotente diante da restauração da “ordem” boêmia.
Esta passagem, por assim dizer, demonstra que certas determinações do poder público já nascem mortas, precisando apenas de quem as sepulte. A ordem de fechar nossos bares e restaurantes depois da meia noite nos fez lembrar essa história, dentre tantas outras que integram a tradição rebelde do Morgado de Costa Beiriz, diante de atos de força e de equívocos como o de agora.
Pai Tonho, se fosse vivo, por certo não perderia a oportunidade e talvez tivesse cunhado, com o seu inglês de trapiche, antes mesmo que os americanos, a expressão “Tolerance zero”. No caso do Morgado, considerando a valentia do Delegado, seria “tolerance under zero!”, ou seja, tolerância abaixo de zero.”
Minhas homenagens ao ilustre paraibano Osmar de Aquino pela passagem do seu centenário.
Alexandre Henriques é jornalista e ensaísta