Alexandre Moca
Querido Bernardo.
O poeta português Ary dos Santos, em seu poema “O Objecto”, começa afirmando: Há que dizer-se das coisas o só menos que elas são. Ao abrigo do que propõe o poeta vou tentar, nesta carta, lhe dizer sobre o que prometi da última vez. Fiquei de lhe contar sobre biografias, permeabilidade e fisiologismo, lembra?
Com o passar dos anos, não há quem não se preocupe com a forma como será lembrado no futuro, ou de como deseja ser esquecido, já que cada um concorre consciente ou inconscientemente para isso.
As biografias, com o advento das redes sociais, começam a ser escritas antes mesmo do nascimento, ou seja, na primeira ultrassonografia. Você não sabe como fiquei cabreiro quando vi o seu rosto, todo amassado, ainda na barriga da sua mãe.
Já os nascidos no meu tempo têm na escola os primeiros registros biográficos consistentes. Quando os da minha geração tornam-se biografáveis, alguns escafandristas do passado vão lá e resgatam boletim escolar, extraindo dele o perfil de estudante, o que não chega, na maioria DAS vezes, a revelar grandes eventos, como deixa claro Rubem Alves e Gilberto Dimenstein, no livro Fomos Maus Alunos.
Do biografado os colegas de geração dirão das suas particularidades, pelo menos as publicáveis. A professora do primário, se viva, será obrigatoriamente convocada a depor sobre o comportamento do ilustre como aluno, como fez a do jogador Hulk, nascido em Campina Grande, hoje astro do futebol internacional. Disse ela, em homenagem que o jogador recebeu na escola de bairro da qual foi aluno, que o ídolo da meninada dificilmente acertava a tarefa de casa, em compensação nunca errou com a bola as vidraças da escola.
Do pouco que se sabe da infância e adolescência de Adolf Hitler, nascido em um povoado perto de Linz, na Austria, destaca-se o seu encanto pelo balé, pela pintura, pela arquitetura, enfim, pelas belas artes, encanto este que foi violentamente reprimido pelo seu pai Alois Hitler, que o queria dedicado à conquista de cargos públicos. Fez o que o pai quis e incluiu na sua biografia a morte de 11 milhões de pessoas. Alguém duvida que melhor fosse o Führer bailarino?
Todo este dispêndio argumentativo meu caro neto, é para lhe prevenir tanto quanto possível, com relação a avaliação da história que você ouvirá ou lerá sobre os ilustres biografáveis da nossa aldeia, sendo recomendável relativa prudência.
Do que será dito de um biografável uma parte ficará, por algum tempo, impressa apenas na cera da oralidade, mídia volátil e imprecisa, diferente do que acontece quando se acendem palavras, como as que acendo agora.
Nos quase 50 anos que separam a minha chegada a Guarabira dos dias atuais, testemunhei a cidade que subiu e desceu ladeiras, encompridando-se para todos os lados, recebendo novos moradores, mas sempre dividida ao meio, como duas as metades de uma laranja, metade sestas que, na realidade, representamos dois agrupamentos políticos dominantes.
Em todo esse tempo, só se transita de um lado para o outro das metades imaginárias dessa laranja, fazendo com que ela fique levemente maior de um lado que do outro, de tempos em tempos, como se houvesse um acerto prévio entre os pólos das duas metades.
Noutra analogia, tudo funciona como em um pastoril, basta atiçar as paixões e o racionalismo sai de cena. Brincamos eternamente de cordão azul e cordão encarnado, embora tenham embaralhado as cores com o intuito de nos confundir.
Qualquer trânsito entre as duas metades que se contrapõem é sempre justificado como um ato de coerência, embora traga guardado, na essência, um interesse pessoal contrariado. Aqui mesmo, de quando lhe escrevo, a palavra coerência aplicada à política eleitoral da aldeia, vai ganhando novos significados, chegando a dançar compassada e alegre valsa com o verbete fisiologismo, neste indecente bailar semântico.
Os tais “coerentes” agem como se fossem banqueiros do jogo do bicho, que para dar um halo de ousadia ao estabelecimento, aceitam apostas de qualquer valor, por vultosa que seja e, de imediato (antes da bóia bicho) correm para apostar a metade da quantia na banca do concorrente, dividindo marotamente o risco e o lucro. Da mesma forma acontece com alguns ditos “coerentes” da nossa aldeia, que militam em um partido e mandam um parente se candidatar por outro, para não correr riscos de ficar de fora, seja qual for o cenário.
Essa, meu caro neto, é coerência dos permeáveis. A partir de pequenas concessões, feitas em nome da ocupação de espaços políticos e de poder cada vez maiores, tornam-se porosos o suficiente para se deixar invadir pelas velhas e carcomidas práticas. Agindo assim, vão ganhando a imagem e a semelhança dos que foram combatidos como adversários, passando a integrar o mesmo homogêneo e mal cheiroso caldo que ferve em nossa aldeia, ciclicamente, de dois em dois anos.
Por isso, meu bom Bernardo, quando você escutar alguém que pede votos repetindo a palavra futuro de forma insistente, certifique-se do passado desse “coerente”. Vá aos escritos, assegure-se, por cautela, da idoneidade do escrevinhador.
Desconfie, meu neto, armando-se da prudência que recomenda Homero Bezerra, de todo aquele que não puder apresentar um amigo de infância, de juventude, ou mesmo de escola, certamente porque não os tem. Para estes, pontua o Homero, atento observador da cena guarabirense, o significado da palavra amizade é algo circunstancial, ou até societário, mas nunca como ensinam os bons e mais atualizados dicionários do idioma.
E por falar em dicionários, para que não reste duvidas, e com o intuito meramente ilustrativo, transcrevo abaixo o significado da palavra fisiologismo na acepção do filólogo Antonio Houaiss. “Fi-si-o-lo-gis-mo – substantivo masculino – conduta ou prática de certos representantes e servidores públicos que visa à satisfação de interesses ou vantagens pessoais ou partidários, em detrimento do bem comum” em acepção livre “Prática ou tendência para a prática da procura de vantagens pessoais ou favorecimentos privados no desempenho de cargos políticos ou públicos, em prejuízo do interesse público comum”
De outra feita falaremos sobre o Rio que corre pela nossa aldeia, sobre a Serra da Jurema, sobre a revolução dos bichos, sobre excesso de astúcia e rede de fuxicos.
Agora vá brincar um pouco, querido Bernardo, que eu vou ficar aqui imaginando o quanto teríamos avançado se verdadeiros fossem os discursos que já fomos obrigados a escutar. Estes em pouco mudaram com relação aos de agora, pois continuam anunciando o futuro, esse lugar imaginário do qual só ouço falar.
Com pés fincados na lama do atraso jamais alcançaremos a terra prometida. Quando se trata de pedir votos o futuro mais parece País de São Saruê, do poeta guarabirense Manoel Camilo dos Santos, lugar onde os rios são de leite e as barreiras de cuscuz.