Recentemente vi através das redes sociais um ensaio do fotógrafo Palmari Lucena. Sua objetiva pausou por alguns instantes a mirada para as flores, os sanhaçus e os colibris do seu jardim no Cabo Branco. Deu também um tempo com relação aos mundos de fora, onde viveu e para lá volta de vez em quando.
Escolheu como alvo, desta feita, o centro velho da velha Filipéia, a das Neves, a de todos os paraibanos que nela vivem, a de todos os outros que guardam identidade telúrica com esse belo enclave, um dia habitado por anjos augustos e arianos daqui mesmo, suçuaranas, suassunas, pessoas, da costa, a d’Africa, misturados a generosos nacos genéticos de tabajaras e d’outros, vindos d’além mar. (Como diz a meninada viajei, pronto! )
O resultado foi a revelação de um sentimento fotográfico mais coronariano que estético, mesmo considerando que todas as ruínas são por demais inspiradoras e até panfletárias para quem as fotografa ou tenta expressá-las de outras formas, seja na literatura, seja na poesia ou nas artes plásticas. O fazem, por certo, na tentativa de guardá-las diante da ameaçadora e inevitável ação do tempo, principalmente em nosso País. Considere-se ainda o concurso de um agente muito mais danoso, destrutivo e devastador, ou seja, o próprio homem.
Não, não falo de qualquer homem, mas daquele homem que não valoriza ou se importa com a sua própria história. Seria o que o darwinismo revisto por um amigo, de forma jocosa, classificaria como o “homo asinino”, ou simplesmente o homem asno, fruto de um movimento invertido na escala evolutiva. Com isso não vai qualquer ofensa ao simpático e pacifico quadrúpede, tão desprezado na atualidade quanto os prédios com valor histórico e arquitetônico do centro velho da velha Filipéia.
A ferrugem, com o seu trabalho paciente, e os fungos transformados em liquens, testemunham as intempéries. Pequenos arbustos crescem em locais insólitos, como nas cornijas das fachadas. No caso de alguns e pelo avantajado porte, poderiam até servir como referência para a datação do abandono das edificações. São ruas inteiras que vão se dissolvendo, sendo apagadas do caderno da história pela borracha do descaso, tudo diante dos nossos olhos apenas tristes e melancólicos, que nada mais revelam a não ser a nossa parca experiência e falta de iniciativa para lidar com situações como essas.
Não faz muito tempo que um outro Lucena, o Cícero, quando esteve investido no cargo de alcaide da velha Filipéia, conseguiu fazer com que fosse pintado o conjunto arquitetônico da praça Antenor Navarro. Também tentou devolver-lhe a vida através do incentivo a alguns empreendimentos como boates, bares e restaurantes. Funcionou, mas só durante algum tempo.
Esmaecida a tinta meramente cosmética da iniciativa, cuja articulação considerou apenas o núcleo restaurado deixando de fora os seus arredores, os notívagos novidadeiros, que à época passaram a frequentar o lugar em alegres bandos, revoaram para a beira da praia.
As cores vivas foram desbotando. Sobre esse esmaecimento das tintas, que veio junto com o da vontade preservacionista, surgiram alguns grafismos e pichações que criaram, para a maioria das pessoas, um desagradável impacto visual. Não seria leviano imaginar que tal impacto traduza, quando nada, uma resposta agressiva, mesmo que inconsciente, dos habitantes do entorno daquela área.
Foram produzidos, na certa, por ousados zumbis, moradores da longa noite do esquecimento e do abandono, a escalar portais e arquitraves, deixando as marcas dos seus protestos para que elas sejam vistas, lamentadas, fotografadas e criticadas de forma efusiva e indignada pelo cidadão que passa por esses locais com o dia já amanhecido. Que outra função teriam se não fosse essa?
— Bandidos! Mereciam ser presos! — Diria o indignado cidadão!
Perguntaria eu então: Presos quem? Os pichadores?
Não, talvez os culpados mesmo sejam os impertinentes fotógrafos. Vejam como eles são insistentes. Através dos visores das suas câmeras, costumam observar, capturar e revelar a Filipéia refletida no espelho d’água do Rio Sanhauá. Se esbaldam com o por do sol naquela área, com suas luzes amarelas, banhando tudo de ouro pôr um breve instante quase todas as tardes. Luzes filtradas através de arcos de janelas e portas que já não existem.
Com um prazer meio que tétrico, esses colecionadores de instantâneos, ao que parece, existem apenas para incomodar o cidadão passante do dia amanhecido, remexendo com a ponta de um agudo punhal de luz as suas lembranças mais caras, como se remexessem uma ferida. Lembranças, por exemplo, do doce e furtivo encontro à tardinha com a recatada e casadoura normalista do Colégio das Neves, nas calçadas antes regulares e desobstruídas da rua General Osório, na cidade alta. Lembranças também da noite, da missa na Catedral e depois dela um novo encontro, desta feita com as alegres, barulhentas e nada recatadas meninas da Rua da Areia, da Maciel Pinheiro e da Silva Jardim, fatais e belas, cheirando a Cashmere Bouquet.
Não, não acho que a culpa é dos fotógrafos !
Quem talvez esteja certo mesmo é o “homo asinino” irritado com toda essa besteira de gastar dinheiro público para restaurar e conservar essas velharias, do tempo dos nossos pais, do tempo dos nossos avós, de tempos imemoriais, quando há tantas outras urgências e não se pode deixar a descoberto o pessoal da propina.
Os discursos gritados através dos letreiros e garatujas, parecem mais eloquentes e com certeza são mais honestos do que o discurso do cidadão passante do dia amanhecido, uma vez que estes últimos afastam de si qualquer sentimento de culpa. É como se a Cidade, o Estado e o País em questão não fossem tão dele quanto do pichador, do fotógrafo e do “homo asinino”.
Os nossos olhos melosos e tristes não chegam a animar gestos efetivos e mais uma vez ancoram no porto meramente sentimental. Não se dão a outra função que não seja a da constatação. Não são capazes de enviar as mensagens corretas no sentido da construção uma solução perene ou minimamente duradoura, como como acontece em outros lugares.
O dispêndio de emoção é tão inócuo que não consegue gerar qualquer energia motivadora. Seguimos desfiando nossa indignação solitária e desorganizada contra os governos.
Aliás os governos, como certa vez disse o popular Mocidade ao então governador João Agripino, foram feitos mesmo pra sofrer.
O ente público, visto sob a ótica de Mocidade, teria sido talhado para receber todas as queixas e insultos. Nessa linha de raciocínio, estaria longe de ser reconhecido ou entendido como uma construção coletiva, muito menos seria capaz de animar qualquer sentimento de pertença.
Posto dessa maneira, o tal ente suportaria, em seu balaio, tudo que lhe fosse endereçado, admitindo ser o pivô de todos os mandos e desmandos, porém sem a obrigação de agir em qualquer sentido. Existiria primeiramente para ser insultado.
É por essas e outras que o cidadão que passa com o dia já amanhecido faz o seu desabafo todas as vezes em que está diante desses sítios arquitetônicos, quase arqueológicos, em avançado estado de degradação já há muitas décadas. Ele, o cidadão, faz questão de atestar, inconformado, que importantes páginas da nossa história, em pouco tempo serão completa e definitivamente apagadas.
Achando pouco os Lucenas dessa história, me incluo como terceiro e garanto que não vou citar mais nenhum outro, se não for preciso. Motivado pelas fotos de Palmari, fui buscar nos arquivos alguns registros que fiz na mesma área, há algum tempo e que ilustram esse escrito.
Os fiz em um passeio pela rua B. Rohan, na tarde de um dia útil. Trato a rua com essa intimidade, embora goste dos nomes grandes e pomposos de alguns logradouros, daqueles que remontam o tempo do império. Com a devida circunstância ficaria assim: rua Visconde Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire-Rohan. A saber, ele foi presidente da província há mais ou menos dois séculos.
Registrei as imagens buscando, intencionalmente, a aproximação de cornijas, dos lampadários, das pinhas, dos balcões e dos gradis e seus detalhes. Descobri, com um certo susto, que ninguém presta atenção a esses prédios e aos seus adornos, nem sequer se dão conta de uma pobre águia que teve a cabeça decepada pela desídia, e que mesmo assim permanece altiva, do topo do frontão, de asas abertas, pronta para alçar seu vôo acefalo.
Uns poucos que viram as fotos que fiz ficaram espantados quando lhes disse se tratar da rua Beaurepaire-Rohan. São eles, penso eu, uma variante do cidadão que passa já com o dia amanhecido e deixa de observar, mesmo no estado em que se encontram, os resquícios da nossa bela arquitetura colonial.
É gente que normalmente se encanta com as luzes de um abajur de LED, moderno, desses que acende e apaga ao toque dos dedos, vendido ali mesmo, mas não consegue descobrir a beleza dos lampadários instalados nos frontões daquela rua. Sequer se dão ao trabalho de levantar a vista para observá-los, mesmo em ruínas. Só percebem a beleza que possuem quando veem as fotos, e ainda perguntam: isso é na B. Roahan? A que altura? Como é que eu nunca vi?
Com relação aos extensos e canoros nomes de pessoas, encontrei recentemente o dono de um deles. Trata-se do amigo Ricardo Carmelo Bandeira de Miranda Pereira. Lembrei dele não só pelo comprido do nome, mas pela informação que ele me trouxe nesse encontro e que de alguma forma me comoveu.
Disse-me ele que a sua mãe, Dona Nininha Bandeira, beirando os cem anos, ainda senhora da sua razão e dona da sua vontade, a despeito das opiniões contrárias, resolveu reocupar o casarão da família na rua General Osório, perto da Catedral. Não teve quem a demovesse. Alegou que estaria mais perto dos lugares onde viveu as emoções mais caras da sua juventude e do lugar onde gosta de ir a missa sem depender de ninguém que a leve.
Pode parecer estranho, mas de todos os envolvidos até agora neste escrito, Dona Nininha talvez seja a que mais preze a sua história e a história do lugar onde viveu a maior parte da vida. Embora tardiamente, transformou a sua vontade, neste particular, em algo efetivo.
O poeta Ferreira Goulart, com tudo o que os poetas têm de sintéticos, universais, atemporais e ubíquos, me ajuda a pôr a termo essas palavras que vez por outra entram em ebulição e não querem parar de tumultuar meu trôpego engenho de pensar. Ele, por certo, resume boa parte do que aqui foi dito, em seu poema Cantiga pra não morrer.
Quando você for se embora/moça branca como a neve/me leve….Se acaso você não possa/me carregar pela mão/menina branca de neve/me leve no coração…..E se aí também não possa/por tanta coisa que leve/já viva em seu pensamento/menina branca de neve/me leve no esquecimento.
Alexandre Henriques é cronista