Por Alexandre Henriques
Desde os tempos em que o ex-prefeito Osmar de Aquino implantou a mão inglesa, em um sábado ensolarado do passado e por não mais que algumas horas, o trânsito do Morgado nunca mais foi o mesmo. De lá para cá, muita água ainda limpa passou por debaixo da ponte de ferro da Great Western Railway Company, na rua do Boi Choco.
Nesse tempo, até as bicicletas chegaram a ser emplacadas e um único guarda de trânsito dava conta da organização do que hoje chamamos de mobilidade urbana.
As placas dos caminhões, camionetes, carros de passeio e de praça, possuíam apenas três dígitos. Os números dessas placas, da frota inteira da aldeia, seja a particular ou a de aluguel, cabiam na prodigiosa memória de José de Andrade Vieira.
Zé Vieira, como era conhecido e para completar, também tinha nos guardados da memória os números de todos os telefones da cidade, com os mesmos três dígitos das placas dos carros. À época a telefonia local era administrada por uma empresa chamada Coteguara.
Era só perguntar e Zé respondia, na bucha. Treinava a memória com essas minudências, por certo para usá-la no jogo de baralho e na estratégia política, que eram o seu forte.
O trânsito, em particular, integra o conjunto de muitos outros problemas que afligem a nossa adolescência como cidade. É a decorrência natural de um lugar que teve seu crescimento forçado para todos os lados sobre a fronteira rural e ainda muito tímida e desorganizadamente para cima.
A povoação abriga cada vez mais gente e foi inundada por carros e motos, numa profusão que a deixa caótica, principalmente em dias de feira.
Fica parecida, nos horários de pico, com uma Nova Deli ou Bombaim, guardadas as devidas proporções.
Ultrapassamos, com razoável desenvoltura, o tempo em que Zé Sinhô, filho de um fazendeiro do Morgado, nos mesmos dias de sábado, pilotando a sua camionete Chevrolet “meia quatro”, branca com para-lamas azuis, escrevia um “zero” com os pneus do seu bólido, deixando o numeral gravado com a tinta dos pneus queimados pelo atrito no centro do pavimento. Isso acontecia, com alguma frequência, no largo da Pedro II, em frente ao prédio de Bezerra Bastos e do cartório de Garibaldi Sales.
Certa vez, em pirueta ainda mais ousada, imprimiu um “oito”, para o delírio de uma plateia que quase sempre o saudava com gritos e assovios após cada manobra.
Como se fosse previamente acertado, o guarda só aparecia depois, para checar a escrita do motorista. Como o cartório em frente não reconhecia a firma do autor, ficava por isso mesmo.
Recentemente foi fechado um longo ciclo mediado entre o não pode mais e o não pode ainda, espaço de tempo que marcou a transição entre a atuação da guarda de trânsito do Estado e efetivação da Guarda Municipal especializada.
Em suma, os guardas estaduais saíram de cena enquanto a guarda municipal ainda não existia de fato. A tal guarda, criada por lei, ficou confinada no papel por uns bons anos, inclusive na gaveta do atual intendente. Finalmente instalada, as mãos foram postas à obra de reorganizar o trânsito da Bombaim brejeira.
Nesse hiato de razoável duração, foi aberto um moroso processo seletivo para admissão dos novos guardas de trânsito. Um outro concurso, desta feita o de “achismos” (eu acho isso…eu acho aquilo!) fluiu sem nenhuma autocrítica por parte dos próprios “achistas,”.
O tal concurso foi capaz de produzir experiências malfadadas, algumas delas carimbadas com bom humor pela população, como no caso do girador da Pedro II.
O tal girador foi batizado pelos morgadenses como “giradoido”. Ineficiente e mal concebido como obra viária, até hoje só serve para causar sustos nos motoristas.
Mais parece uma roleta russa. Mesmo assim é respeitado, como devem ser respeitados todos os loucos.
Nos dias atuais, uns poucos agentes de trânsito do município já podem ser vistos no Morgado, algumas vezes em duplas, postados nas esquinas onde o tráfego é mais intenso e crítico. Comunicam-se aparentemente apenas entre si e assumem uma postura visivelmente inamistosa.
É como se a cara amarrada os fizesse superiores, colocando-os acima dos mortais e fosse absolutamente necessária para suportar o peso da farda cítrica. Tal postura, na opinião de boa parte dos munícipes, é bem mais azeda do que o necessário para o exercício da autoridade.
Dentro da máxima que gentileza gera gentileza, o exemplo do agente de trânsito paraibano “Apito de Ouro” contraria a lógica local e bem que poderia ser usado como parâmetro.
Apito de Ouro atuou na década de setenta, na capital da província. Sua ferramenta para orientar e organizar o trânsito era apenas o apito. Uma coreografia característica e a gentileza com a qual tratava os condutores de veículos, de carroceiros a taxistas, de caminhoneiros a proprietários de automóveis de luxo, era a mesma, sem distinção e sempre com um sorriso nos lábios.
Apesar dos pesares a chegada dos novos agentes, somada a outras iniciativas, fez melhorar em muito o nosso trânsito, tanto com relação ao fluxo como a organização dos estacionamentos, além de outros particulares. Nisso todos concordam. Há de se reconhecer que as poucas intervenções feitas nessa nova fase, não foram concebidas como fruto do empirismo experimentalista, mas sim levadas a cabo por gente do ramo, após uma mínima avaliação técnica.
Um fato, porém, assume dimensões no mínimo preocupantes. Numa cidade onde o bipolaridade política parece ser uma praga inextinguível e onde os investimentos na área do trânsito, pela timidez, aparentam ter como única fonte de financiamento o dinheiro arrecadado com aplicação dos autos de infração, um talão e uma caneta, ou mesmo um moderno programa desses construídos para dispositivos móveis, poderiam se tornar ferramentas, quando mal usadas, destinadas ao atendimento de todos os apetites, desde a compulsão arrecadatória, até a mera implicância político partidária.
A assertiva acima poderia até ser considerada atentatória à dignidade dos agentes da nova guarda, não houvesse o cuidado na colocação do verbo no seu devido tempo, ou seja, poderiam.
Há motivo para que pensemos assim? É claro que há!
Conheci as instalações da STTRANS no dia em que fui requerer o cartão de “idoso” para seu usado em vagas de estacionamento especiais, o qual só pretendo lançar mão em casos absolutamente extraordinários. Mesmo que quisesse, teria que disputar a tal vaga com outros sessentões, setentões e até oitentões, visto que quase não há espaços com essa destinação aqui no Morgado. Os poucos que existem padecem de sinalização adequada.
Bem recebido e já acomodado, aguardando a minha vez de ser atendido, vi quando um motorista, com um auto de infração na mão, procurava saber qual o nome do agente que tinha lhe aplicado a multa pelo fato de estar sem cinto de segurança, ao trafegar na avenida padre Inácio de Almeida, em frente ao Mercado Velho.
O servidor da STTRANS disse que o guarda responsável pela autuação era aquele cuja matrícula já fora informada na notificação. Achou, por certo, que o motorista se conformaria.
Instado de forma insistente a dizer o nome do guarda, o servidor informou que a matrícula pertencia ao Superintendente do órgão.
Questionado se havia sido o próprio Superintendente que havia aplicado a multa, o servidor informou que não. Acrescentou que todas as multas, por orientação da administração, são lançadas na matricula do superintendente.
É como se o “super” do “intendente” conferisse ao chefe do trânsito local o dom divino da onipresença, da ubiquidade, ou seja, o de poder de estar em todos os lugares ao mesmo tempo.
Internamente, no âmbito da estrutura administrativa da intendência, o fato talvez nem seja visto com tanta estranheza. O intendente geral, pelas suas práticas políticas e administrativas, dá indícios fortes de ter sido agraciado divinamente com o dom da onipotência.
Quem se der ao trabalho de consultar o Código de Trânsito, mais precisamente o Inciso V do art. 280, verá que os autos de infração lavrados de forma apócrifa ou que tenham como signatários pessoa diferente do agente que presenciou a conduta, tipificou e redigiu o auto, são nulos.
Concentrar na mão do superintendente a possibilidade de só ele rever possíveis equívocos ou desvios de conduta dos agentes, parece agredir o mais comezinho senso de justiça, dando oportunidade para ilações de todos os tipos, inclusive a de que pesos e medidas diferentes poderão ser usados na hipótese de um eventual recurso.
Se o desejo real é o de que venhamos um dia a ter um trânsito modelo, do qual possamos nos orgulhar, multar um veículo que se move a 2,5 quilômetros por hora, com um intervalo de meio metro entre um carro e outro pelo fato do condutor estar sem cinto de segurança, parece pedagogicamente inaceitável, pouco razoável e até truculento. Um mero gesto do agente, sanaria o problema. O motorista, por certo, o respeitaria mais ainda. Não daria margem para o condutor deduzir que o salário dos agentes depende das multas aplicadas.
Há razões para dedução. O portal da transparência do município, continua opaco com relação ao número de multas aplicadas por mês, trimestre ou semestre, bem como sobre valores apurados e a sua devida destinação.
Da forma como atua hoje o órgão de trânsito do Morgado, precisaríamos de uma memória prodigiosa como a de Zé Vieira, para gravar o inteiro teor do Código de Trânsito e segui-lo tão à risca, que conduzir um veículo em solo morgadense passaria a ser uma atividade por demais tensa e até temerária.
Um bom motorista certamente não é aquele considerado um ás do volante, como um dia foi Zé Sinhô, mas aquele que conduz seu veículo procurando obedecer, no máximo que for possível, ao verdadeiro cipoal de regras impostas pelo código específico.
Isso não é fácil numa cidade que tem suas obras infraestruturais arrastadas por mais de meia década, com ruas esburacadas, desvios, deficiente de sinalização, carente de semáforos, com faixas de pedestres que são apagadas como uma escrita a grafite pela borracha dos pneus.
Como todos os condutores que trafegam pelo Morgado, pertenço ao grupo de risco dos que podem vir a ser multados. Espero que nunca por uma conduta deliberada. Em qualquer das hipóteses posso até tomar a limonada, mas sabendo quem a preparou.
Alexandre Henriques é cronista, fotógrafo-multimídia