Por Alexandre Henriques (de Moca)
O bom da língua, além de poder brincar com as palavras, é ressignificá-las com apenas leves interferências gráficas, ou até separando prefixos e sufixos, ouvi-las mentalmente e entendê-las para além do que elas tentam dizer.
Já na “vibe” do “nós somos…” poderíamos dizer que: nós somos o que comemos, o vinho e a cachaça que bebemos; somos os filmes que vimos, as histórias que escutamos e, com efeito, as que ajudamos a construir, seja como atores principais, ou coadjuvantes. Somos, quem sabe, as histórias que inventamos, vestindo de disfarces e fantasias as nossas memórias.
Sobra a ser dito, nesse particular, que “nós somos”, principalmente, as histórias que contamos e, quando nos assiste talento para tanto, as que assentamos em papel, gravando-as para sempre na mais durável das mídias, ou seja, o livro, para que elas não se percam de forma volátil na oralidade, no tempo e no espaço. Isso se aplica a Brevidades, o mais novo escrito do conterrâneo Ivan Lira de Carvalho.
Certa vez, em um restaurante, após assuntar a animada conversa de um grupo instalado numa mesa ao lado, disse a minha companheira, mesmo sem ter ouvido qualquer alusão a nome de cidade:
— Aí nessa mesa tem gente de Cuité! (terra da minha nascença para os que não sabem).
Cléoma então perguntou:
— Como você chegou a essa conclusão?
— Não sei! Suponho, apenas.
Não deu outra.
Talvez o registro vocal, o jeito de falar, a forma de narrar os acontecimentos além de algumas idiossincrasias imperceptíveis para estrangeiros, a ouvidos e olhos nus.
Todas as cidades produzem as suas histórias. A que você nasceu, de forma especial, além das histórias, aparenta ter um número muito maior de contadores do que outros lugares. Essa foi a conclusão tirada por Cléoma, após o contato com os vizinhos da alegre mesa ao lado.
No breve da idade deixei Cuité, ou seja, ainda menino. Hoje, diante dos relatos dos meus contemporâneos, criei uma espécie de nostalgia do que não vivi; uma saudade estranha do que não cheguei a participar. Isso se torna ainda mais evidente quando tento entrar em algumas cenas de Brevidades, em especial naquelas que têm como cenário o espaço serrano do Curimataú, compartimento que abriga uma geografia humana formada por gente calorosa e despachada, que não se furta a uma prosa franca, criativa e contente.
Tento compensar essa lacuna existencial, em uma academia de contadores de histórias que é formada sob os auspícios de Marcos Camarense, um amigo com status de irmão, uma espécie de mecenas serrano, e que reúne periodicamente, em Cuité, em uma extensa távola quadrada o mais puro universo cultural da cidade. Dessa assembleia tive a honra de participar algumas vezes, junto com acadêmicos do naipe do autor de Brevidades, de Dagnaldo, Dagbaldo, Boni, Inaldo Lira, Maurilhão, Ramilton Marinho e muitos outros contadores de histórias.
Nessa reunião, pela teatralidade e a riqueza com que são trazidos pelos narradores, parecem se materializar em nossa frente personagens como Mocó, Zé de Luzia, Gabirão, Ceciliano, Galego Teixeira, Zé Pinto e Índio de Casado dentre outros cujos nomes, por si só, já são uma verdadeira pintura.
Ivan Lira, ao tecer o seu escrito com as “embiras da afeição” nos remete, de plano, à saga sisaleira do lugar. O homem do Curimataú, mesmo quando constrói o seu texto a partir de outros lugares ou mundos, revela sutilmente as tais idiossincrasias, mostrando não mais que a mobilidade do seu enraizamento telúrico. Volta sempre por caminhos da memória que um dia foram de ida, hoje não mais empoeirados e esburacados, mas na certa os mesmos que, em viagem nada lisérgica, o autor atravessou o riacho do Feijão, ouvindo Bob Dylan, em um toca fitas TKR, a bordo do fusca branco de Carlito.
Alexandre Henriques é cronista, fotógrafo-multimídia