“Eles debocharam de mim enquanto eu sangrava, não me prestaram socorro.” Essa é a lembrança mais viva na memória da estudante Gabriella Talhaferro, 16 anos, após ficar cega do olho esquerdo. A causa? Uma bala de borracha disparada por um policial militar do 28º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano durante a dispersão a um baile funk na região de Guaianases, no extremo leste da cidade de São Paulo, na madrugada de domingo, dia 10 de novembro.
A jovem estudante do primeiro ano do Ensino Médio agora não pretende mais voltar para a escola neste ano. Ela contou que era a sua segunda vez naquele baile e que saiu de casa muito contente. A ideia era se encontrar com mais 15 amigos e seguirem em trem da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) da cidade onde moram para o Baile do Beira Rio, como é conhecida a festa de rua que reúne centenas de jovens nas madrugadas de sábado para domingo. Os grupos são vindos dos mais diferentes bairros do lado leste da capital e de cidades na região metropolitana.
A menina vaidosa agora precisa fazer curativos no olho de hora em hora. Gabriella relembra que, no local do baile, foram avisados de que não seria realizado o tradicional evento, já que a PM estava ali desde as primeiras horas da tarde impedindo sua realização. A rua em que a reunião acontece que fica a poucos metros da estação de trem de Guaianases, também administrada pela CPTM, do 44º DP (Guaianases) e da sede da 1ª Companhia do 28º Batalhão.
Segundo Gabriella, mesmo sem o baile ela e seus amigos decidiram permanecer no local pois, já era meia-noite e não teriam como voltar para Itaquaquecetuba, já que o trem havia parado de circular. Não há transporte coletivo nesse horário. A menina então conta que, por volta das 2 horas, policiais militares passaram a dispersar os pequenos grupos que ainda permaneciam no local com bombas e exigindo que deixassem a região.
“Nessa hora fomos até a estação para tentar ir embora, mas os guardas de lá não deixaram a gente ficar, então voltamos”, lembra. Após voltar, a menina conta que ela e seus amigos decidiram ficar em frente a uma adega, na tentativa de fazer com que os policiais que continuavam no local não confrontassem o grupo. Foi nesse momento que o disparo aconteceu.
“Eu estava em frente a adega quando tomei o tiro. Eles vieram na viatura, pararam na rua e quando virei o rosto o policial atirou. Estavam bem na minha frente. Ele estava dentro da viatura. Nem desceu. Mirou no meu rosto e atirou”, conta a garota.
Segundo Gabriella, os quatro PMs que estavam em um carro da corporação de porte pequeno teriam então seguido mais adiante, onde pararam. É desse momento que ela não se esquece. Ensanguentada, com muitas dores e vomitado, os PMs teriam recusado atendimento médico, inclusive com um deles rindo o tempo todo da situação.
“Pedimos para eles ligarem para o socorro e eles disseram ‘se vira’. Um deles ainda me disse ‘vá se foder’, enquanto o outro dava risada. Sou capaz de reconhecer todos: o que atirou em mim, o que me xingou e o que dava risada. Não sai da minha cabeça”, disse, em um dos poucos momentos que troca sua voz doce e fina, típica de uma menina de sua idade, por um timbre mais forte, de revolta.
O socorro da menina foi providenciando por pessoas que estavam na própria adega, já que os policiais se recusaram a prestar socorro e um pouco antes de ser baleada ela havia se perdido de amigos e seu celular estava descarregado. O dono da adega ligou para um motorista da Uber, que a socorreu até a UPA de Itaquera. Como a unidade não tinha um médico especializado para o caso, a jovem foi conduzida até um hospital público em Ermerlino Matarazzo, outro centro hospitalar em que não pôde ser atendida.
Procurado, o ouvidor das polícias de São Paulo, Benedito Mariano, afirmou que aguarda mãe e filha para serem ouvidas e registrarem a denúncia. Antes, porém, elas vão elaborar o boletim de ocorrência no 44º DP, que fica a poucos passos do baile funk, e colado parede com parede ao batalhão dos policiais autores do disparo.
Em nota, a SSP (Secretaria da Segurança Pública), comandada pelo general João Camilo Pires de Campos nesta gestão do governador paulista João Doria (PSDB) informou que “a Polícia Militar esclarece que, em 9 de novembro, policiais do 28º BPM/M realizavam a operação ‘Noite Tranquila’, com o objetivo coibir ocorrências de perturbação de sossego, quando foi necessário o uso de técnicas de controle de distúrbios para conter a multidão”, garante a pasta.
“Até o término da ocorrência não havia relato de pessoas feridas, mas, ao tomar conhecimento do caso citado pela reportagem, o Comando do 28º Batalhão Metropolitano instaurou procedimento apuratório para investigar as circunstâncias. Até o momento, a Polícia Civil não localizou registro de boletim de ocorrência sobre o fato”, prossegue a nota oficial.
Do El País Brasil