O meu último encontro com Valéria Rezende se deu há pouco tempo e entrou para a cota dos agradáveis acasos. Já havia cumprimentado a autora de “Quarenta Dias” pelo melhor romance de 2015, agraciada que foi, recentemente, com o prêmio Jabuti, a maior láurea da literatura brasileira. Ainda não o tinha feito de forma presencial. O encontro inesperado com a escritora foi em um café em João Pessoa. O abraço, a foto, dois dedos de prosa e o dedo dela em riste, em tom de reiterada cobrança foram, para mim, balsâmicos.
Gosto de Valéria “de graça”, como se diz por estas bandas. O gostar a que me refiro é fruto de uma admiração antiga, antecedente, em muito, ao Jabuti. Data de outros tempos. Conheci a autora em Guarabira, acho que lá pelo final da década de 70. Educadora, fotógrafa, cineasta, poeta, escritora, enfim, uma mulher de muitos ofícios, multifacetada.
Nessa época ela sumia e voltava, ciclicamente, em suas andanças por Oropa, França e Bahia, em suas demandas latino americanas, num tempo em que a noite política ainda era escura, porém a manhã já se anunciava, esta mesma manhã que almejo não escureça novamente e pela qual me disponho a lutar permanentemente.
Tenho como certo que foram dessas idas, vindas e permanências na Paraíba, onde há muito fixou residência, que ela tirou as histórias contadas em seus livros, transbordantes de humanidade. Sem dúvida uma leitura envolvente e prazerosa, que instiga e emociona. Palavras que desembocam carregadas de múltiplos significados, denunciadoras de farta vivência e de uma fina compreensão da alma humana universal.
De uns dias para cá tenho lido, repetidas vezes, um poema de Viviane Mosé no qual a autora dá a entender que nas emoções represadas pode estar a raiz de muitos dos nossos males. Palavras presas, para ela, acabam endurecidas, calcificadas. Se transformam em tumores, abcessos e até em pedras. Diz Viviane em sua poesia que: “palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima” — A voz literária de Valéria, na fala emprestada a Alice, personagem central do seu livro, é na verdade tumor liquefeito, abcesso lancetado, pedra esfarelada, paráfrase que tento para estabelecer uma ponte entre o dizer poético de Viviane e Quarenta dias.
Alice, personagem central do livro, neste particular, ganha a dimensão de barragem, rompida pela mecânica radical das mudanças compulsórias. Como reação, impinge sobre a “Barbie” uma esfera gráfica e, dessa fricção, revelam-se as fissuras entre dois mundos. Dois mundos que se chocam geográfica e cronologicamente, evidenciando maniqueísmos de novo e velho, de norte e sul, de distancias polares.
Hoje, quando escolho o que vou ler, me guio pelas sensações, como a de quem bebe um vinho. Acho que isso se deve às licenças conferidas pelos janeiros. Penso tê-las conquistado. A nada me obrigo neste particular. Não sou crítico literário, nem sommelier, me reconheço apenas leitor e enófilo, um consumidor em busca do que me agrada o paladar. Para não fugir à analogia, a amiga Valéria, enquanto autora, é um rótulo que guardei na memória desde a muito boa safra de O voo da guará vermelha. Quarenta dias, de uma safra mais recente, é uma festa para as papilas cerebrais.
Só há pouco tempo consegui, com o auxilio da própria autora, traduzir o oferecimento que ela fez no meu exemplar de Quarenta dias, escarrapichado pela sua esfera gráfica: “Para Alexandre, companheiro de tantas jornadas, esta travessia pelas rachaduras de ruas e almas. Um abraço grande da irmã Valéria”. …travessia de ruas e almas… No minimalismo da definição da sua própria obra, em três palavras, uma fartura de significados onde cabe o mundo.
Voltando ao dedo em riste da autora e ao seu mantra …”escreva, escreva, escreva…” acabei por fluidificar as palavras de agora. O seu pedido para publicar a foto do nosso encontro com a seguinte legenda: “O dia em que prometi a Valéria que publicaria um livro” me fez britar estas pedras, amolecer estas palavras, que de certo estavam calcificadas. Um compromisso e tanto para o meu pouco engenho e arte, mas desde já topado.