Alexandre Henriques
jornalista e cronista
A cidade cada vez mais selva, não sabe mais o que fazer com os silva. Falo dos silva que, muitas das vezes, foram separados dos demais pela cor da pele, pela pobreza, pela miséria e por todos os deveres que lhes foram e lhes são impostos (legais, ilegais, morais e até imorais) tendo como contrapartida quase nenhum haver, a não ser a cota de víveres que os mantém de pé, como zumbis, a assombrar o mundo dos “bem-nascidos”.
Triste é sina a desses silvas que passam, muito cedo, a conhecer a verdadeira extensão do espaço que ocupam no mundo, quando transbordam sobre os muros e telhados dos presídios apinhados; quando já não há espaço dentro das celas e ninguém mais os quer do lado de fora.
Não se concebe passar um dia, sequer uma hora, em um lugar desses. É inimaginável para os que estão do lado de fora ver um parente, um conhecido ou principalmente um filho em um lugar desses.
Os silva de sobrenome, juntos, somam cerca de nove por cento dos brasileiros. Sua grande maioria, sem sombra de dúvida, integra os 16,27 milhões de silvas por afinidade que ainda vivem em estado de pobreza extrema, segundo o IBGE.
Mas, há casos de Silvas especiais, bem-nascidos, que se fosse na Grécia antiga seriam chamados de eupátridas. São estes cuja sorte já os visita no berço, conferido-lhes poder e riqueza de nascença.
Para esse tipo de Silva, nos dias atuais, é comum que haja uma escola melhor, um cuidado especial com a sua saúde, uma moradia confortável com segurança privada e, um carrinho, para os seus deslocamentos. Um Porsche, por exemplo, cujo modelo mais simplesinho, um silva comum, ganhando um salário mínimo, trabalharia por 39,9 anos para comprar, se aguentasse ficar até lá sem comer.
Já nascer um Silva rico e possuir carro de luxo, é quase uma decorrência. Qual o problema então? Alguns haverão de dizer: dinheiro é para essas coisas mesmo! O que não se faz por um filho. Os amiguinhos todos de Ferraris e Lamborghinis e o nosso Silva com um carrinho furreca. Nada disso, vamos dar um Porsche para “Silvinha”.
É compreensível também que seja atendido por muitos outros silvas, assalariados, “vocacionados” para servir, desde o bem posto café da manhã, até à cama forrada e limpa que os espera na madrugada.
Alguns desses que conheço através do relato dos pais, ao chegarem cansados da noitada, atiram os sapatos para o alto e deixam as roupas pelo chão. Não sabem sequer, como tudo volta para o armário, limpinho e pronto para ser usado novamente.
Mas, até aí, tudo ainda é compreensível e sem grandes novidades. Ser rico não é ilegal ou pecado. Ilegal, muitas vezes, é como se fica rico. Poder comprar um carro potente de luxo e dar ao filho, aparentemente, não tem nada demais.
Nesse episódio do assassinato do agente de trânsito, o que ninguém entendeu, apesar da recorrência com que vem acontecendo no Brasil de agora, foi o vanguardismo jurídico, a lei em movimento de adequação, as regras do jogo sendo mudadas com o jogo em curso.
Isso, talvez, é o que tenha deixado a grande maioria dos paraibanos e brasileiros perplexos, durante a última semana. O surgimento de uma Justiça diferenciada, ágil, talhada como um terno, alinhavada para atender o “Silvinha” e os seus familiares aflitos, diante da iminência do mesmo ser preso.
Uma Justiça tão rápida e célere, que foi capaz de se manifestar à noite, às três da madrugada, deixando para trás, na fila de espera, tantos outros silvas já presos, sem direito a um despacho sequer, quanto mais uma decisão de segunda instância. Um verdadeiro luxo para um silva comum.
Grande parte dos que aguardam na fila essa atenção e celeridade do judiciário continuam, ironicamente, saindo pelo cano ladrão dos presídios abarrotados, em muitos casos com suas penas já cumpridas, à mingua de uma canetada benfazeja, como se diz no jargão. Outras vezes, o que é mais grave, permanecem presos sem culpa comprovada.
O Silvinha, foi solto sem nunca ter sido preso, depois de atropelar e matar um agente de trânsito da operação Lei Seca, deixando-o para trás, imerso em uma poça do seu próprio sangue.
Numa divisão meio que forçada, algumas vezes para esconder motivações diversas do fato em si, uma parte da imprensa reagiu excessivamente escandalizada, enquanto uma outra, quase fez cara de paisagem.
Essa outra à qual me refiro é, nada menos, que o braço midiático de um dos maiores grupos econômicos da Paraíba, com ramificações metastásicas dentro da política.
Tal conglomerado emprega e pode desempregar uma boa fatia dos que vivem do labor jornalístico em terras Tabajaras e pertence aos parentes do Silvinha em questão.
Meio que atrapalhada e cheia de dedos, as tais empresas de comunicação, sob a pressão das redes sociais, noticiaram o fato trágico como se o veículo (o de muitos cavalos de potência) usado no atropelamento e fuga, possuísse vontade própria e tivesse sozinho atingiddo a vítima, assim como um robô fora de controle, ou um transformer, por exemplo.
Mais ainda. Em textos cuidadosamente elaborados, as emissoras criaram uma espécie de nuvem sobre o nome do motorista que dirigia o veículo na ocasião, evitando citá-lo.
É como se o Porsche estivesse, no momento do atropelamento, sendo pilotado por um motorista ainda não conhecido pela mídia.
Ingênua e desajeitada maneira de noticiar um fato. Porém, nada absurdo, a menos que essa estratégia de agora seja transformada em tese de defesa.
Não acho tão escandaloso e destoante assim o comportamento das empresas de comunicação controladas pelos Silva. Ora, logo as emissoras comandadas pelo tio do Silvinha! Deveriam ser elas as encarregadas de fazer a caveira dele diante da opinião pública? É querer muito! Deixemos esse papel para os outros veículos, supostamente isentos.
Durante a última semana procurei percorrer, mentalmente, todas as locações da tragédia, a partir da mancha de sangue deixada no asfalto, a cerca de duzentos metros de onde moro, epicentro da tragédia, ou seja, o lugar onde os silvas comuns, normalmente, colocariam um cruz, algumas grinaldas e acenderiam velas.
A cada argumento expendido por alguém nas redes sociais, seja no sentido da consternação geral pela tragédia que envolveu as duas famílias, (os mais comuns, cômodos, aparentemente ingênuos e isentos) até os mais exacerbados, de ambos os lados, fui identificando o lugar de cada um dos principais atores no palco dessa tragédia.
Procurei construir a cena, na minha imaginação, desde avistamento da blitz pelo motorista; a decisão de subir o giro do motor; a injeção farta de combustível aumentando de forma brutal a aceleração da máquina; a injeção de adrenalina no sangue do piloto; a arrancada; o atrito dos pneus no asfalto; o ronco do poderoso motor e, finalmente, o choque violento que deixou impresso em baixo relevo no para-brisas da possante máquina, a imagem da violência com a qual foi colhido o agente da lei.
Imagino ainda que o atropelado tenha, como um malabarista compulsório, dado cambalhotas no ar, até se esborrachar quase sem vida no inflexível e áspero pavimento, quebrando as estruturas ósseas que lhe sobraram íntegras, depois do choque com o bólido.
Já em outra locação, chego a ver a viúva do agente de trânsito abraçada aos dois filhos, consolada pela mãe, em sua casa, repleta de vizinhos e parentes solidários e indignados, tentando ministrar maracujinas, garapas de açúcar e outras meisinhas para acalmá-la, além de um grande número de curiosos e desocupados.
No lar esfacelado não há espaço de privacidade para chorar o morto. A visita de advogados inescrupulosos e a insistência de um segmento que se auto intitula imprensa, a querer extrair da dor da família um sensacionalismo tão desrespeitoso quanto infame e analfabeto, complementam a cena.
Do outro lado da cidade, possivelmente em uma ampla sala com vista para o mar, advogados insones tentam construir a tese da defesa junto com os familiares. A mãe zelosa afaga a cabeça do Silvinha, que faz cara de coitado.
Uma amiga da família, diligente, sugere a contratação de uma psicóloga da moda, especialista em casos como o do Silvinha, que se encarregará de diminuir o sentimento de culpa do rapaz, muito mais pelo mal estar criado para toda a família, seja do ponto de vista moral e até econômico, do que pela morte do agente de trânsito.
Afinal, o agente da lei não era conhecido da família. A dor dos seus familiares mora distante da casa dos Silva. Amigos se candidatam a ir conversar com a família da vítima, discutem estratégias, perguntam o que podem ofertar de imediato para acalmar os ânimos.
A cena que tento enxergar agora é a do almoço do domingo na casa do diligente magistrado, que às três horas da madrugada interrompeu seu douto sono para fazer justiça, garantindo ao Silvinha a liberdade de forma preventiva. Se abandonada a prolixidade do juridiquês, a decisão poderia ser resumida, de forma sucinta, da seguinte forma: “Com Silvinha ninguém mexe!”.
Sob olhar interrogativo da família diante da repercussão do fato, vejo agora o magistrado, tentando convencer os seus e a si próprio, que poucos teriam a coragem que ele teve para assumir o peso e a gravidade da decisão que tomou, no horário em que tomou, tudo como manda e reza a lei.
Esquece o laborioso desembargador que não faz muito tempo, chegou sobre a sua mesa, no claro do dia já amanhecido, um pedido de soltura de um jovem preso, após uma colisão entre dois veículos em um cruzamento no mesmo bairro do Bessa, cuja sinalização havia sido encoberta por uma árvore.
Diferente do Silvinha, o tal jovem, mesmo ferido, ligou para o Samu, para a polícia e permaneceu no local até a efetivação do socorro às vítimas, tendo uma delas falecido. Preso pela polícia que ele mesmo chamou, foi conduzido ao hospital onde foi constatado, através de exames, que ele não havia ingerido bebida alcóolica.
Todos os indícios já apontavam e os laudos técnicos confirmaram, posteriormente, se tratar de uma fatalidade. Ou seja, aquilo que não decorre da nossa vontade ou intenção, aquilo que o jovem não contribuiu para que acontecesse.
O motorista, no caso, tinha profissão, endereço certo e todos os requisitos que a lei prevê para gozar do benefício de responder o processo fora das grades.
Mesmo assim o tal jovem foi mantido preso por decisão do mesmo magistrado. Teve que amargar as agruras do cárcere, até que seu caso fosse revisto por um instância superior, e lhe fosse restaurada a liberdade.
Queira ou não, o denodado plantonista, com a sua decisão, quando nada polêmica, mais ainda pelas circunstâncias nas quais foi exarada, contribuiu para aumentar a sensação de desigualdade na distribuição da Justiça em nosso Estado, abrindo margem para uma série de inevitáveis especulações.
Ouvi, de um cronista do cotidiano, a seguinte frase sobre o assunto: “Há coisas que só se faz à noite!”
No mês em que o Brasil sepulta um juiz sério, observador e aplicador atendo da lei, morto em circunstâncias trágicas e ainda pouco esclarecidas, o povo paraibano insiste em deixar insepulto o e à vista de todos o sentimento de indignação com o judiciário, diante do que vem sendo tratado pela imprensa brasileira e através das redes sociais como um um verdadeiro escárnio.
A cidade selva, quis e quer ver o Silva que atropelou e matou, na cadeia, por um bom tempo. Por 30 dias? Por um dia ? Por algumas horas? Tudo bem, apenas para uma foto atrás das grades. Estaria, pelo menos, até um novo crime, até uma novo habeas corpus, criada a falsa sensação de que os rigores da lei alcançam a todos, inclusive os silvas bem-nascidos e mau criados.